Entre ganhos e muitas perdas, a covid também muda mentalidades

Entre ganhos e muitas perdas, a covid também muda mentalidades
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Entre ganhos e muitas perdas, a covid também muda mentalidades

Na passagem do ano, ninguém podia prever que, em poucos meses, conheceríamos a maior e mais brusca transformação civilizacional das nossas vidas. Mas em março, quando se tornou evidente que a covid-19 tomara proporções pandémicas, fomos remetidos ao confinamento e nada mais voltaria a ser igual. Entre ganhos e muitas perdas, conclui-se que a mudança de mentalidade será parte essencial da recuperação.

Os registos da popular App flightradar são uma boa metáfora da “tempestade” que nos atingiu: Num dia os aviões cobriam os céus como um prodigioso enxame; no outro restava apenas vazio e um ou outro voo solitário. Com os aviões de centenas de companhias aéreas, de bandeira ou low cost, estacionados nas placas dos aeroportos, restava apenas ar e a nossa confusão. O mundo cada vez mais global da véspera tornara-se ínfimo sem aviso, quase microscópico, reduzido, na maior parte dos casos, às paredes da casa de cada um.

Esta travagem a fundo na vida a que nos habituáramos há décadas ditou a paralisação de quase todo o setor dos transportes. Se tão intensa mobilidade humana é encarada como um fator responsável pela rapidez com que o vírus se disseminou da China à Europa (nomeadamente após as férias de Natal e a celebração do Ano Novo Chinês), o transporte aéreo passou a ser encarado como um veículo condutor da epidemia. Mas a imposição do estado de emergência em numerosos países, incluindo Portugal, também reduziu substancialmente a circulação de transportes terrestres e marítimos, de passageiros e mercadorias, que, em muitos casos, ficou limitado à função de abastecimento de bens essenciais.

Calamidade no turismo

Num mundo em que tudo funciona em rede, tão brutal paragem nos transportes decretou instantaneamente o estado de calamidade no setor do turismo e da restauração. De repente, cidades, praias e estâncias de ski esvaziaram-se, colocando em risco milhares de empregos. No caso português (embora não só), está em causa toda uma indústria que fora essencial na superação da crise económica: Segundo dados do Turismo de Portugal, em 2019, este setor assegurava 52,3% das nossas exportações de serviços, tendo as receitas obtidas registado um contributo de 8,7% no PIB português.

Continuaríamos indefinidamente assim, a acreditar que o céu era o limite? Provavelmente não. Para muitos, esta “aterragem de emergência” pode ser o momento ideal para redefinir objetivos e apurar estratégias. Na verdade, com o boom do Turismo viera também a gentrificação de cidades como Lisboa, Porto ou Aveiro e o um inflacionamento do preço das casas (compra e aluguer), mas também de bens e serviços insustentável para a generalidade da classe média portuguesa.

Em Portugal, como noutros países, a recuperação do Turismo (e de outras atividades) parece depender também da imagem de responsabilidade na gestão da crise que se transmite para o exterior. Embora ainda seja cedo para balanços, no “campeonato” dos que ficaram bem no retrato há que referir Portugal, República Checa e Grécia, cujos sistemas de saúde públicos, ao contrário do que aconteceu em países com maiores recursos financeiros.

No nosso país, essa aposta na imagem de excelência na saúde como trunfo está a ser desenvolvida pelo Turismo do Alentejo, região onde, até à data, apenas se registou um óbito por covid-19. Muitos falarão, a propósito, da baixa densidade populacional, mas mesmo nas três capitais de distrito (Portalegre, Évora e Beja) o número de pessoas infetadas nunca atingiu as proporções do resto do país. Em jeito de brincadeira, muitos falam das eventuais virtudes do lifestyle alentejano – da excelência dos vinhos e da gastronomia a um ritmo de vida mais lento e descontraídoSi non e vero e bene trovato:

Já a pensar no período pós-pandemia, foi lançado um spot promocional a que foi dado o título de “We Call It Alentejo” em que são justamente exaltadas essas virtudes à mistura com a (inegável) beleza da paisagem.

O contraponto a esta imagem de serenidade em tempos de pandemia vem, por outro lado, de governos como os dos Estados Unidos e da China, que esgrimem mais acusações do que argumentos, na hora de apurar responsabilidades, e, de forma ainda mais trágica, do Brasil onde o caos político e social deixou totalmente à mercê da doença e da miséria milhões de pessoas. Geograficamente mais perto, a Espanha e Itália não conseguiram impedir a propagação rápida da pandemia em grandes centros metropolitanos como Milão ou Madrid, enquanto a Suécia, tantas vezes apontada como exemplo das “maravilhas civilizacionais”, pagou um elevado preço em vidas humanas pela sua recusa em decretar o confinamento obrigatório.

A este desgaste de imagem não escapam sequer organizações internacionais como a União Europeia e sobretudo a Organização Mundial de Saúde. A primeira, ainda sob o choque do Brexit, revelou uma vez mais a sua dificuldade em compreender o sentido de entreajuda entre Estados membros, com o Norte (sobretudo os Países Baixos, na voz do seu ministro das Finanças) a acusar o Sul de má gestão dos fundos comunitários. Quanto à OMS, desde que se tornou evidente que a covid-19 não era apenas mais uma forma de gripe que se tornaram públicas as suas dificuldades de comunicação. Em conflito com Donald Trump, a agência das Nações Unidas para a Saúde arrisca-se seriamente a perder o contributo financeiro dos Estados Unidos em plena pandemia.

Mas nem tudo são gritos e equívocos. Em termos de imagem pública, a melhor surpresa veio dos antípodas. Na Nova Zelândia, esse país que a maior parte dos ocidentais associa apenas ao deslumbrante cenário das filmagens de O Senhor dos Anéis, a liderança política da trabalhista Jacinda Ardern (no cargo desde 2017) trouxe-lhe popularidade verdadeiramente global. Aos 39 anos, a primeira-ministra manteve a serenidade nas circunstâncias mais adversas, fossem elas a demissão do ministro da Saúde (surpreendido a viajar com a família durante o confinamento) ou um forte abalo sísmico durante uma comunicação sua em direto, a 25 de maio. Demonstrando toda uma nova visão de futuro, Jacinda propôs aos parceiros sociais reduzir a semana laboral para quatro dias de modo a incentivar o turismo interno, o que decerto despertou muitas simpatias entre os seus conterrâneos.

Uma nova consciência de consumo?

A agilidade mental para compreender o momento que vivemos (e que os historiadores da Economia comparam já à Grande Depressão da década de 1930, desencadeada pela Queda da Bolsa de Nova Iorque, em Outubro de 1929) pode fazer a diferença entre o sucesso e a catástrofe. Para governos e para empresas. Se o vírus e o confinamento ditaram o êxito conjuntural de serviços de entregas de bens, plataformas de e-commerce e, como não podia deixar de ser, de fabricantes de máscaras, viseiras, desinfetantes ou de suplementos vitamínicos, supostamente capazes de reforçar o sistema imunitário, há ilações a retirar para a sociedade futura.

Confinados nas nossas casas, a maior parte de nós foi forçada a trocar as salas de espetáculos pela leitura ou pelos serviços de streaming de filmes e séries de televisão. Ao mesmo tempo que, um pouco por todo o lado, disparavam assinaturas de plataformas como a Netflix, HBO, mas também a Filmin (vocacionada essencialmente para o Cinema) ou a Disney Plus, ficavam reduzidos à total precariedade laboral e desproteção milhares de músicos, atores, bailarinos, perfomers, técnicos, entre outros profissionais do espetáculo e das artes de palco. Dito de outra maneira, quando muitos cidadãos compreendiam, alguns pela primeira vez nas suas vidas, que os conteúdos culturais são o que os impede de enlouquecer numa situação limite de isolamento, punha-se a nu toda a extensão da precariedade no setor, naturalmente pré-existente à pandemia. Pela primeira vez em muito tempo, as manifestações e chamadas de atenção dos artistas portugueses passaram de um apontamento final nos telejornais para o debate público nos media e nas redes sociais.

Em pleno confinamento, também os escritores portugueses andaram nas bocas do mundo… ou pelo menos em meios de comunicação como a BBC, The Guardian ou Le Courrier Internacional. Num meio conhecido também por acesas rivalidades, 46 escritores produziram, em suporte digital, um folhetim literário quase à moda dos que se publicavam nos jornais (como o DN) no século XIX. Sob a coordenação de Ana Margarida Carvalho, o Bode Inspiratório – assim se intitulou a obra coletiva – começou com um primeiro capítulo de Mário de Carvalho, a 3 de abril. Seguiram-se, sem que alguém quebrasse a corrente, entre outros, Ana Cristina Silva, Patrícia Reis, Afonso Cruz, Cláudia Lucas Chéu, Rui Zink, Helena Vasconcelos e Julieta Monginho, com as honras do encerramento a caberem, já a 8 de maio, a Luísa Costa Gomes. Este Bode Inspiratório não se limitou, porém, a reunir escritores tão diferentes num objetivo comum. Contou ainda com as colaborações de outros tantos artistas plásticos como António Olaio, Ana Vidigal, Pedro Cabrita Reis ou Marta Wengorius. O resultado final desta iniciativa, que ainda há de dar uma exposição e um livro, pode ser consultado no site bilingue (Português-Inglês): www.entre-vistas.pt/bode-inspiratorio

E a Moda, como reagiu a tempos em que a maior parte dos seus consumidores habituais estava reduzido a pijamas? Como reagirá à diminuição do consumo que se avizinha, com a crise que aí vem? Numa indústria de milhões (milhões de euros, mas também de empregos e de consumidores), há muito que fora lançado o debate da sustentabilidade ambiental. As novas circunstâncias vieram reforçá-lo, com empresas como a italiana Gucci a anunciar que não mais voltará ao “circo” das quatro coleções por ano, mas às tradicionais temporadas Outono/Inverno e Primavera/Verão. Em causa está a enorme pressão que a volatilidade dos consumidores colocava no mercado, exigindo novidades a cada mês, no retalho low cost mas, por contágio, também à Alta Costura.

Como a Moda, a Cosmética reflete com a precisão de um sismógrafo as movimentações profundas de uma sociedade. Ao decréscimo significativo da procura do artigo de maquilhagem mais vendido no mundo, o baton (máscara oblige), responde com o investimento em produtos “make it yourself” como as colorações de cabelo caseiras, os autobronzeadores, mas sobretudo em maquilhagem para os olhos. De repente, é o que nos resta para seduzir ou simplesmente para expressar uma reação como nos tempos em que as coquettes disfarçavam o sorriso (ou o seu contrário) atrás do leque. O que nos resta? Talvez seja um pouco mais do que isso. Talvez seja o princípio de uma nova linguagem do olhar.

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